segunda-feira, 26 de março de 2012

Dobragem Crítica: Rango PT-PT




Bem, eu já estou há que tempos para escolher um primeiro filme para criticar nesta secção...  Mas já que o Rango foi o vencedor do Óscar de Melhor Filme de Animação deste ano, porque não começar por aí?

ATENÇÃO:  SPOILERS



RANGO conta a história de um camaleão doméstico que é forçado a vaguear pelo deserto depois de ter sido projectado para fora do carro de família em que viajava, eventualmente chegando à vila de Poeira.  Ao tentar impressionar os locais, ele inventa o personagem e o nome Rango – e é bem sucedido, ao ponto de se tornar xerife.  No entanto, a vila está a passar por dificuldades no fornecimento de água, e vai caber ao nosso protagonista descobrir o que de facto se passa.  



Pessoalmente, gostei bastante do filme – aliás, devo dizer que fazer esta crítica ajudou imenso, por estranho que isso pareça.   O filme é absolutamente lindo no que toca ao aspecto visual, e os personagens, com algumas excepções, são únicos e memoráveis.  A história é um tributo aos westerns clássicos, com uma boa dose de “descoberta de si mesmo” à mistura.  E devo dizer que funciona bastante bem, embora tenha as minhas reservas no que toca a alguns aspectos ou partes dela.  Por exemplo, não consigo levar a sério a Deus Ex Machina dos cactos no fim do filme, e digamos que acho que  a primeira cena do Rattlesnake Jake (Cascavel Jake, em português) podia ter sido mais bem pensada.  Muito mais bem pensada. 

O Jake deve ser vidente nos tempos livres, porque o Rango falou disto uma vez,
ao resto do destacamento e a mais ninguém.  What.
Mas adiante, se estivesse a falar dos problemas que tenho com o filme, estava aqui o dia inteiro.
Ao fim e ao cabo, é um filme bastante divertido e belissimamente construído, e percebo perfeitamente porque ganhou o Óscar.  ...Para não falar de que é refrescante ver um filme animado que não foi feito a pensar maioritariamente na audiência infantil, mas que ao mesmo tempo consegue não se perder dentro da sua própria presunção artística, por assim dizer – e ainda render(!).



A dobragem do Rango foi feita nos estúdios da On-Air e dirigida, como quase todas as dobragens do estúdio, pela actriz Cláudia Cadima, portanto o standard de qualidade é bastante alto.  ...No entanto, tem demasiadas falhas para que eu a possa recomendar acima da versão original.  Não me interpretem mal, tem de facto pontos fortes, mas o que faz bem não chega para contra-balançar aquilo que está mais fraco.

A primeira coisa que eu notei foi que a dobragem não deve muito à subtileza.  Há uma propensão para o exagero esporádico de algumas falas sem razão aparente, o que eu acho que pode ter algo a ver com quão distintas as vozes da versão original são – exactamente um dos aspectos que as nossas dobragens costumam “melhorar”, por assim dizer.  Regra geral, quanto mais distintas são as vozes dos personagens no original, mais são as hipóteses que a nossa versão vacile, normalmente por via de reinterpretações que podiam resultar melhor (Looney Tunes, alguém?). 


Verdade seja dita, por vezes a subtileza (ou a falta dela) deve-se ao texto – e embora aqui não seja sempre esse o caso, parece que houve uma preocupação marcada em mudá-lo de propósito, de maneira a que ficasse diferente do original.  Geralmente, isto não é má ideia, porque é uma prova de que o texto foi adaptado para se ajustar melhor à língua de destino.  No entanto, se não houver o cuidado prévio de testar e re-testar uma adaptação, é muito fácil resultar em mudanças supérfluas (“Complicante”? A sério? O quê, “complicada” não cabia nos batimentos?), ou falas ditas à pressa por não haver espaço (ou batimentos) para elas – o que acontece quase regularmente.

Porque 5 sílabas cabem no espaço de 2.
Também houve o esforço de apimentar o espectro sonoro com diversos sotaques relativos ao nosso país, especificamente à área que temos mais parecida com o deserto Mojave (ou qualquer deserto, diga-se), o Alentejo e fronteira de Espanha.
Isto acaba por ser uma faca de dois gumes, já que é uma das razões que mais frequentemente vejo citada por quem rejeita a dobragem.  Por outro lado, e na minha opinião, é uma decisão nada estranha e até adequada, dado que parte do filme deve à ambiência que consegue criar.  ...Pensando nisso, quer-me parecer que não são os sotaques por si só que alienam o público, mas o modo como estão aplicados, referindo outra vez a facilidade com que se cai no exagero. 




Esta dobragem é também um caso invulgar, na medida em que para além das personagens ditas principais, tem 26 actores secundários, um número gigantesco para uma dobragem portuguesa.
Não vou falar de todas, já que são muitas, e na sua maioria, os castings estão bem feitos, sem grandes reparos.  Uma falha ou outra, maioritariamente na representação, mas nada digno de nota.
Além disso, os créditos dos actores secundários não especificam quem dá voz a quem (olha que novidade), e eu não consigo detectar a grande maioria.  Portanto, em vez disso, vou focar-me naqueles que acho que mereçam menções especiais.


E, infelizmente, isso traz-nos a uma das coisas que estão mais fracas na dobragem:  o personagem principal.


O casting do Manuel Marques como o epónimo do filme, à primeira vista, parece uma escolha perfeita.  A voz acaba por ficar bem, já que a personagem do Rango é bastante “aparvalhada”, uma coisa em que o Manuel Marques é especialista na sua representação.  E, verdade seja dita, nas cenas em que o Rango está mais vulnerável, ele não se sai nada mal.  ...No entanto, à medida que o filme avança, torna-se cada vez mais claro que esta escolha tem sérios problemas. 

Iiiiiiiiiiiiiiiiiihhhhh
Não consigo deixar de pensar que este casting foi feito a pensar na capacidade do actor de se desdobrar em personagens completamente diferentes.  Olhando para o personagem, é um juízo perfeitamente compreensível, mas tem uma lacuna:  os personagens em que o Manuel Marques se desdobra normalmente são paródias a pessoas que existem.  Ênfase na palavra “paródias”.
Ora, a performance dele tem dois problemas cruciais:  1. O actor original era o Johnny Depp, e convenhamos que emular ou ultrapassar qualquer performance dele é difícil, MAS o factor principal é 2. O facto de que o Manuel Marques não leva o personagem a sério, ou se leva, não transparece na performance. 


Devo citar o comentário dos produtores:  a ideia por trás da personagem é que o ego dele é tão fraco que ele se agarra constantemente a personas que ele próprio cria, e a história do filme é precisamente a crónica de como ele lentamente acaba por encarnar e se tornar efectivamente no Xerife Rango.
O que acontece é que parece que na versão portuguesa, o centro da performance foi o soar engraçado, em vez de minimamente credível.  De cada vez que a persona, Rango, entra em cena, há 65% por cento de hipóteses que a performance desvaire para o cómico, seja isso conveniente à história ou não.  Também acontece com o camaleão, mas no Rango é mais óbvio, dado que o Manuel Marques já está a jogar contra o tipo dele, e portanto não soa “natural” o suficiente.  Tudo isto faz parecer que o personagem está constantemente a representar, do princípio até ao fim, o que quer dizer que a evolução pela qual ele passa não é tão clara como deveria. 
Noutro filme, isto poderia não ser tão grave, mas neste é um entrave enorme, por razões que vou elaborar mais à frente.



E, falando de soar pouco natural, porque não falar da Beans, ou Feijoca, interpretada pela Filomena Cautela.  Admito que não conheço o trabalho dela, mas posso dizer que de todas as versões que o DVD português traz (Inglês, Português, Grego e Árabe), a nossa Beans é a de que eu menos gosto.  A voz é demasiado grosseira para a personagem, e o sotaque soa falso, como se ela estivesse mais preocupada em manter o sotaque do que em representar. 
O problema ao interpretar personagens com sotaque, se ele não nos é nativo, é que aumentam as probabilidades de soar forçado de maneira a que a performance sofra, o que é exactamente o que acontece aqui – lá está aquilo de que falei mais cedo.  Na verdade, isto acontece com mais personagens, inclusive o Rango, mas a Beans parece-me o caso mais flagrante.



Meu caro, mas é claro que não sou o vilão.  Porque pergunta?
No entanto, é de destacar a performance impecável do João Lagarto como Presidente da vila de Poeira.  Ele faz a cena do “eu sou o vilão mas ninguém sabe disso (embora seja óbvio) e se não estivesses contra mim até podia ser simpático” tão bem.  A quantidade de noções que passam na voz dele é incrível, e é provavelmente o que a dobragem tem de melhor.  ...Embora o papel dele não seja tão importante como poderia ser, no grande esquema das coisas, infelizmente – o problema da vila de Poeira serve como pano de fundo e é o fio condutor da história, mas esta não deixa de ser mais sobre o Rango e a viagem dele.



...Zé Maria?
O Cascavel Jake...  Devo dizer, foi um bocado desapontante.  Quando vi o nome do Fernando Gomes nos créditos, disse para mim mesma “Meu, isto vai ser bom”.  Quer dizer, o tipo até se parece com ele! ...Sem ofensa.  A interpretação está boa, só não...  Tão boa como eu estava à espera.  Muito suave e com pouco peso.  Não sei, acho que quando li “Fernando Gomes” devo ter pensado “Carlos Paulo”, mas mesmo assim não havia garantias de nada. 





E o Rui Unas como Espírito do Oeste? ...A sério?  Quando se fala em “Clint Eastwood português” é ele que vos vem à cabeça?  Nada contra o actor (hei, eu gostei dele como o Donatello), mas...  Sem brincadeiras, ele soa praí 15 ou 20 anos mais novo que o personagem.  ...O que não é bom.  É o Clint Eastwood, caramba!



Bem, ao menos de entre as várias vozes secundárias temos, por exemplo, o Fernando Ferrão como Wounded Bird, que FINALMENTE aparece numa dobragem – a sério, com uma voz daquelas e só agora é que o chamam?  Pfft, vergonha.  Há falta de vozes graves, meus, aproveitem as que existem! ...Não, a sério.  Aproveitem-nas!!


Depois de pensar um bocado, o maior problema desta dobragem torna-se aparente:  a falta de foco.   Houve muita atenção dispendida numa quantidade de detalhes que quando somados, não são suficientes para contra-balançar o facto de que o nosso personagem principal não reflecte as mudanças por que passou ao longo do filme. 
...O que é uma falha enorme, já que a história – que segue o arquétipo d'A Viagem do Herói, já agora – é claramente centrada nele.  Se o protagonista não soa convincente num filme quase exclusivamente dedicado a ele, tudo à volta fica a parecer falso e torna difícil a conexão com a audiência.  Talvez noutro filme esses detalhes lhe tivessem acrescentado bastante ao ambiente, mas aqui estão desproporcionados em favor daquilo que deveria ter sido o foco principal.



O meu veredicto final:
Embora a dobragem do Rango tenha os seus momentos, acaba por falhar, muitas vezes simplesmente por ser do filme que é.  A falta de foco no protagonista é o que a aflige mais, mas a falta de subtileza da representação, e o ênfase no tentar tornar tudo mais cómico parecem tentativas equivocadas de tornar o filme mais apelativo a uma audiência infantil, e que a longo prazo comprometem a qualidade do produto final.  Isto, somado a outros factores, acaba por tornar o filme difícil de digerir para uma audiência mais geral.  ...O que é uma desilusão, já que teria sido uma oportunidade excelente de experimentar um estilo mais natural, a condizer com o visual do filme.

Tenho muita pena ao dizer que ao fim e ao cabo, a dobragem do Rango não é uma que eu recomende particularmente.  A não ser que sejam aficionados das dobragens, ou que tenham curiosidade em saber como a nossa está, fiquem-se pelo Johnny Depp, que ficam muito bem acompanhados...  Ou vejam a dobragem grega, que está realmente formidável.

E desde já peço desculpa por começar estas críticas com o pé esquerdo.  Quer dizer, um blog dedicado a divulgar as dobragens portuguesas, e não recomendo logo a primeira que critico?  Para a próxima tenho de arranjar uma boa para compensar.  Hmm... 

ARC, over and out. 




FICHA TÉCNICA:  RANGO

Estúdio:  On Air
Tradução:  Cláudia Cadima
Adaptação:  Cláudia Cadima
Direcção:  Cláudia Cadima


Señor Flan:  Fernando Luís
Rango:  Manuel Marques
Roadkill:  Paulo B
Beans:  Filomena Cautela
Priscilla:  Catarina Sales
Doc:  Carlos Vieira de Almeida
Presidente:  João Lagarto
Rattlesnake Jake:  Fernando Gomes
Espírito do Oeste:  Rui Unas

Vozes adicionais: 
Adriano Luz,  Alexandro Lugo,  António Machado,  Antonio Ortíz,  Carlos Araújo,   Carlos Santos,  Cláudia Cadima,  David Bento,  Fernando Ferrão (Wounded Bird),  Bruno Ferreira,  Gonçalo Ferreira,  Habib Gedeón,  Isabel Ribas,  João Maria Pinto,  Joaquim Nicolau,  Jorge Mourato,  José Nobre (Elgin),  José Jorge Duarte,  Luís Mascarenhas (Buford),   Manuel Coelho,  Maria Henrique,  Martinho Silva,  Octávio Matos (Sr. Merrimac),  Paula Fonseca,  Renato Quaresma,  Vasco Lourenço 

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